16/10/2009

QUINTAS DE DEBATE

O Papel da Administração Pública em Angola e os Direitos Humanos
à Luz do Decreto-Lei 16-A/95

Reis Luís
Director Executivo do Centro Nacional de Aconselhamento.
Professor Universitário.
Licenciado em Ciências Humanas pela Universidade Comillas de Madrid (Espanha).
Posgraduado em Ciência Política pela Universidade Autónoma de Madrid (Espanha
)

Nota prévia

Antes de mais, é justo que apresente à OMUNGA os meus agradecimentos pelo convite que me foi formulado, esta organização não-governamental de direito angolano que tem facilitado espaços de cultura do debate em diversas matérias de interesse público.

O tema que me cabe expor tem a ver com o papel da Administração Pública, isto é, o papel do Estado, enquanto ente plurinstitucional a quem incumbe a responsabilidade de velar pelos interesses dos cidadãos. É esta perspectiva que irei desenvolver ao longo do nosso diálogo.


1. A Administração Pública enquanto ente inconfundível

Permitam-me parafrasear Nelson Mandela, quando num dos seus eloquentes pronunciamentos se referia à democracia. Dizia ele: “a democracia com fome, sem educação e saúde para maioria é uma concha vazia”. Três são os elementos importantes que se podem extrair da frase: “fome, educação e saúde”. Significa isto dizer que o Estado, enquanto pessoa colectiva, sobre ele impende a responsabilidade primacial de salvaguardar os interesses dos cidadãos sem que este papel lhe seja solicitado por estes.

Esta célebre frase motivou-me sobremaneira desenvolver este tema na base daquilo que cabe ao Estado assegurar. Afinal, em qualquer sociedade, a educação e saúde constituem direitos fundamentais que o Estado está necessariamente chamado a satisfazer. Não pode relegar nem transferir esta actividade a outrem ou à mercê dos particulares. O Estado, enquanto, detentor do poder político e “gerente” das instituições democraticamente criadas, deve assumir a sua função de garante e guardião dos mais variadíssimos assuntos da comunidade nacional.

Neste sentido, é imprescindível que ele, o Estado, se distinga, se diferencie de outros actores, não se confundindo com outros entes que desempenhem às vezes funções iguais mas cujos meios, objecto e fins são desiguais. Talvez haja quem possa criticar esta tendência de pretender desassociar o Estado dos cidadãos. Mas não há intenção de o fazer, apenas parto do pressuposto de que existe duas formas de entender o Estado. Uma que parte do conceito de que o Estado é a composição de três elementos: Território, Nação e Povo. E outra que é entendida na perspectiva mais orgânica. Esta maneira de encarar o Estado é que vai prevalecer ao longo da minha exposição.

Na verdade, e partindo da definição concebida pelo Professor Diogo Freitas do Amaral, autor da obra Curso de Direito Administrativo, a Administração Pública é o sistema de órgãos, serviços e agentes do Estado, bem como das demais pessoas colectivas públicas, que asseguram em nome da colectividade a satisfação regular e contínua das necessidades colectivas de segurança, cultura e bem-estar económico e social. Diz ele ainda que administrar é tomar decisões e efectuar operações com vista à satisfação regular de determinadas necessidades, obtendo para o efeito os recursos mais adequados e utilizando as formas mais convenientes.

2. Análise prática em torno do conceito apresentado

Tomámos conhecimento de uma definição bastante clara sobre a Administração Pública, da qual facilmente se pode aurir o papel que ela desempenha a favor dos cidadãos, papel este que pode ser entendido na dupla dimensão:

i)- A primeira dimensão é a que tem a ver com o assegurar a satisfação regular e contínua das necessidades colectivas de segurança, cultura e bem-estar económico e social.

No meu entender, traduzindo o sentido que esta dimensão encerra, o Estado não pode abster-se de continuamente proporcionar segurança em prol da colectividade, sendo esta um direito fundamental dos cidadãos, aliás, por sinal consagrado na Lei Constitucional de Angola quando esta diz no seu artigo 20° que o Estado respeita e protege a pessoa e dignidade humanas. Todo o cidadão tem direito ao livre desenvolvimento da sua personalidade, dentro do respeito devido aos direitos dos outros cidadãos e aos superiores interesses da Nação angolana. A Lei protege a vida, a liberdade, a integridade pessoal, o bom-nome e a reputação de cada cidadão.

Esta protecção deve exteriorizar-se em todas as formas de actuação do Estado, através dos seus serviços e agentes, através dos seus órgãos e leis, através da sua política e meios à disposição. Não nos referimos apenas àquela segurança que é cedida pelas forças policiais, militares ou outros agentes de segurança, mas a uma segurança social e abrangente. Por exemplo, a segurança em relação àquilo que consumimos, a segurança rodoviária, a segurança ambiental, a segurança jurídica, ou seja, a seriedade das instituições de justiça do país no tratamento de casos litigiosos, etc. Tudo isto tem só um nome: a segurança da pessoa humana e da sua dignidade.

Qualquer Estado que, na sua forma de se afirmar, dê sinais de insegurança, fará que essa mesma insegurança contagie o agir e o comportamento dos cidadãos, cuja consequência inevitável será a ausência de confiança nas instituições estatais. Num Estado democrático de direito, os cidadãos devem depositar confiança em todos os serviços, agentes e órgãos que emanam da organização do Estado, para servir de modelo em todos os actos políticos e sociais.

A segurança não é só a organização da força posta ao serviço de interesses vitais: é também, por um lado, a garantia da estabilidade dos bens e, por outro, a da duração das normas e da irrevogabilidade das decisões do Poder que importem justos interesses a respeitar.

Da definição dada por Diogo Freitas do Amaral, há que realçar as necessidades colectivas ligadas à cultura. É, efectivamente, papel do Estado que a cultura não seja atingida por correntes sísmicas, sofrendo fortes influências exógenas ou mesmo endógenas que a abalem mortalmente. Num período histórico em que a Humanidade é atingida pela efeitos devastadores da globalização, é importante que o Estado se apresente como o garante e protector dos valores culturais das comunidades nacionais, criando políticas que visem motivar e cativar todos aqueles actores que se dediquem à causa das culturas e tradições dos diferentes grupos étnicos.

Um país como o nosso, onde a heterogeneidade cultural é algo inegável e notório, parece-me ser indispensável o papel do Estado na criação a todos os títulos de mecanismos de defesa contra tudo o que prejudique a identidade cultural do povo.

ii)- A segunda dimensão é aquela que se refere à tomada de decisões e realização de operações já que o autor diz que administrar é tomar decisões e efectuar operações com vista à satisfação regular de determinadas necessidades, obtendo para o efeito os recursos mais adequados e utilizando as formas mais convenientes.

O Estado é, de facto, esse ente que tem legitimidade para tomar decisões. Que decisões? Aquelas que só a ele incumbem, no âmbito do papel que cumpre em benefício da harmonia social, decisões essas que produzam efeitos na relação intersubjectiva dos indivíduos em sociedade. Logo, as decisões que o Estado tome, não serão aquelas que provoquem ou suscitem conflitos no meio social, dividam as famílias ou comunidades.

O Estado deve unir em vez de dividir. Entretanto, qualquer decisão deverá obedecer ao princípio da legalidade, aliás, previsto no Decreto-Lei 16-A/95 de 15 de Dezembro. No seu artigo 3.º diz o seguinte: “na sua actuação os órgãos da Administração Pública devem observar estritamente a lei e o direito nos limites e com os fins para que lhe forem conferidos poderes”.

Nesta mesma senda, para uma compreensão mais ampla no que às decisões diz respeito, é oportuno lançar mão ao artigo 9.º do citado Decreto-Lei quando no seu n.º 1 diz: “os órgãos administrativos deverão pronunciar-se sobre todos os assuntos que lhe sejam apresentados pelos particulares”. Reside aqui um preponderante papel do Estado face às solicitações dos cidadãos que remetem para os órgãos da Administração Pública, da qual aguardam respostas inadiáveis.

Quer isto dizer que o Estado está condenado a se pronunciar, ou seja, a dar respostas, sejam elas para o indeferimento ou deferimento. Um silenciamento ou uma decisão que insinue um indeferimento tácito – como estabelece o artigo 59.º do já citado decreto-lei constitui, na minha óptica de violação flagrante ao princípio de decisão.

Traduzindo em miúdos o que acabei de frisar, o Estado não deverá emudecer-se quando determinadas pessoas singulares ou mesmo colectivas desejam que lhes sejam dadas a conhecer por escrito as decisões tomadas relativamente à sua pretensão. Está aqui em causa o direito de ser informado, mas sempre na base de uma informação não conspurcada, isto é, clara, certa, segura e verídica, porque baseada em leis. E a informação a ser dada pelos agentes e serviços do Estado não dever padecer de uma certa contraditoriedade, sob pena de colocar o cidadão numa insegurança jurídica.

A última dimensão prende-se com a ideia de que administrar é, afinal, efectuar operações com vista à satisfação regular de determinadas necessidades.

3. Os direitos humanos e os princípios estatuídos no Decreto-Lei 16-A/95

Não quero terminar a minha prelecção sem antes referir ao conteúdo de alguns princípios que o Decreto-Lei 16-A/95 estabelece e fazer um paralelismo com as exigências para o respeito dos direitos humanos em Angola.

Na minha modesta visão, parece-me que não tem havido um cumprimento escrupuloso dos princípios que passo a enunciar:

Artigo 4º: Princípio da prossecução do interesse público. Este artigo diz o seguinte: “Aos órgãos administrativos cabe prosseguir o interesse público, no respeito pelos direitos e interesses dos cidadãos”.

O Artigo 5º: Princípio da proporcionalidade. Traduz-se no facto de as decisões dos órgãos da Administração que entrem em choque com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos não podem afectar essas posições em termos desproporcionais aos objectivos a atingir.

Artigo 6º: Princípio da imparcialidade. Admite a ideia fundamental de que os órgãos da Administração Pública devem tratar de forma imparcial os cidadãos com os quais entrem em relação.

Artigo 7º: Princípio da colaboração da administração com os particulares. Estabelece que no desempenho das suas funções os órgãos da Administração Pública, devem actuar em estreita colaboração com os particulares, cabendo-lhes nomeadamente, i) prestar informações e esclarecimentos, ii) receber sugestões e informações.

Já o Artigo 8º: Princípio da participação. Chama atenção sobre a necessidade de participação dos cidadãos em vários processos ao assegurar que aos órgãos da Administração Pública cabe assegurar a participação dos particulares.

E finalmente o Artigo 10º: Princípio do acesso à justiça que sublinha que é garantido aos particulares o acesso à justiça administrativa na perspectiva de fiscalização contenciosa dos actos da Administração, para tutela dos seus direitos ou interesses legítimos.

Apresentados os princípios caberá a nós, presentes neste espaço de debate, avaliar se tais princípios têm na generalidade efectivado ou têm sido desrespeitados traduzindo-se na violação dos direitos humanos. A realidade quotidiana nos oferece bases para julgar com propriedade esta situação.


Considerações finais

De tudo o que foi aqui exposto, penso ser oportuno tecer algumas considerações à laia de conclusões:

1.º) O Estado só pode alcançar os seus fins exercendo todas as suas funções. E mesmo exercendo-as em particular será raro que os actos de uma função não suponham o prévio exercício de outra ou não careçam de por outra ser completados.

2.º) O Estado, ao tomar as decisões deve fazê-lo de acordo com aquilo que a lei estabelece, sob pena de ilegalidade. Ao decidir de acordo estará a executar as leis. Entretanto, a execução das leis pressupõe a legislação, e a legislação pressupõe a participação activa dos cidadãos, e a participação activa dos cidadãos pressupõe a promoção pelo Estado de debates públicos, bem como a interacção entre governantes e governantes; e, finalmente, essa interacção pressupõe ao fim e ao cabo o conhecimento de leis, partido da ideia de que só se defende aquilo que se ama. Só se ama aquilo que se conhece.

3.º) Como vede, em toda a relação Estado-cidadãos deve existir uma compenetração e uma cadeia de interesses. Só assim, a verdadeira democracia há-de funcionar e os direitos humanos terão sentido por estarem consagrados em diversos diplomas.

4.º) O Estado, ao desempenhar o seu papel de satisfazer as necessidades da colectividade no seu da comunidade nacional, não está a fazer um favor aos governados; simplesmente está a ser coerente consigo mesmo olhando para aquilo que constitui sua obrigação irrenunciável. E os governados não devem agradecer o Estado como se fossem mendigos. É obrigação do Estado ir construindo casas, escolas, hospitais, para os cidadãos, entre outras coisas.

5.º) O verdadeiro papel da Administração Pública é o de assegurar a todo o memento e em todo o lugar a satisfação de todas as necessidades que se prendem com o colectivo da comunidade e de respeitar as leis que vigoram dentro do Estado.

Muito obrigado!

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