05/03/2011

QUINTAS DE DEBATE 3/03/11 Por Vicente Pinto de Andrade: A Lei da Probidade Pública e o Combate à Corrupção em Angola

ASSOCIAÇÃO JUSTIÇA PAZ E DEMOCRACIA


Benguela, 03 de Março de 2011

Hotel Luso

A Lei da Probidade Pública e o Combate à Corrupção em Angola

                                        VICENTE PINTO DE ANDRADE
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA

1.      Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à Associação Justiça Paz e Democracia (AJPD), na pessoa do seu vice-presidente, Dr. Serra Bango, e à Omunga, na pessoa do seu coordenador interino, João Malavindele, o convite para abordar, no quadro das Quintas de Debate, questão da Lei da Probidade Pública ligada ao combate à corrupção. O tema é não só oportuno, mas também estimulante.
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3.      A aprovação da Lei n.º 3/10, de 29 de Março (Lei da Probidade Pública) é o reconhecimento, embora tardio, por parte das autoridades angolanas, da importância da probidade na gestão dos bens públicos. Contém 11 princípios sobre o exercício de funções públicas, nomeadamente os princípios da legalidade, do respeito do património público, da prossecução do interesse público, e o princípio da responsabilidade e da responsabilização do titular, do gestor, do responsável e do funcionário ou trabalhador. O facto de a sua aprovação dar origem à revogação da Lei sobre a Disciplina Estatal, da Lei Orgânica que Estabelece o Regime Jurídico e o Estatuto Remuneratório dos Membros do Governo, assim como o Decreto sobre as Regalias Patrimoniais dos Dirigentes e o Decreto que Regulamenta o Recebimento de Pequenas Ofertas a Membros do Governo, naquilo que a contraria, mostra as limitações e o alcance do seu conteúdo. No entanto, a sua publicação e discussão tem o mérito de retomar a discussão, que vem sendo feita, há longos anos, ao nível de personalidades e organizações da sociedade civil, sobre as causas e o impacto da corrupção, bem como sobre as medidas que devem ser adoptadas com vista ao seu combate.
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5.      Há quatro práticas correntes no nosso País, amplamente associadas à corrupção. São elas o jeito, o favor, a gorjeta e a chamada “gasosa”. As fronteiras dessas cinco práticas são difusas e ténues, sendo a actual situação política e económico-social, obviamente, um factor determinante do seu alastramento a todo espaço nacional e da sua disseminação por todo o tecido social.
6.      No passado, era frequente solicitar-se um “jeito”, ou um “jeitinho”, a fim de acelerar a tramitação e resolução de assuntos urgentes e ninguém de bom senso recusava a sua prática, em situações de aperto. O jeito constituía uma prática utilizada para contornar o excesso de burocracia e de regulamentações. O jeito gozava de conotação positiva e legitimava-se na consciência popular como um mecanismo de adaptação às situações complicadas da sociedade. Traduzia uma fuga às regras formais. Essa prática, que pressupunha criatividade, ousadia e imaginação, geradora de espaços de relações pessoais ali onde vigorava a impessoalidade, foi sendo substituída, paulatinamente, pela “gasosa”. Esta prática social generalizou-se e assume, nos nossos dias, contornos de uma verdadeira extorsão.
7.      Os serviços prestados pelos funcionários públicos têm, hoje, na maior parte dos casos, e como contrapartida, a entrega forçada de compensações monetárias. Esta prática social não deve ser confundida com a gorjeta, a qual constitui uma pequena gratificação que se concede a quem presta um dado serviço. A “gasosa” também não deve ser confundida com o favor, o qual corresponde a um serviço prestado sem remuneração.

8.      Quer o jeito, quer o favor, quer a gorjeta, não envolvem, necessariamente, a transgressão de alguma norma. Contudo, são práticas sociais que podem desembocar na corrupção. Esta é uma prática que implica uma significativa gratificação (dinheiro, bens, qualquer vantagem patrimonial ou benefício de outra natureza), para que regras estabelecidas sejam quebradas em benefício do corruptor. No caso angolano, o agente activo da corrupção não é, necessariamente, o cidadão que deseja ver o seu assunto resolvido mais rapidamente. O corruptor activo é o funcionário público que exige uma “gratificação” pelo serviço que é obrigado, por lei, a prestar ao cidadão.

9.      Os sectores da educação e da saúde são das áreas em que a corrupção é mais corrente e mais evidente: manifesta-se a olho nu. E, também, de consequências mais graves, no que respeita às relações sociais e aos valores éticos. A apropriação ilegal de recursos colectivos (públicos ou organizacionais) coexiste com a apropriação indevida de recursos individuais. As causas deste fenómeno encontram-se na natureza das instituições políticas, na existência de monopólios e de poderes discricionários por parte de determinados agentes sociais, nas excessivas regulamentações e autorizações, nas medidas administrativas de gestão, nos contactos frequentes e prolongados entre cidadãos e funcionários.

10.  A corrupção nas áreas da educação e da saúde alastraram-se, durante os últimos anos, perante a indiferença e o silêncio do Governo angolano, com particular incidência em épocas de matrículas e de exames, bem como de consultas urgentes. Os baixíssimos salários da função pública, e em particular dos professores, dos médicos e enfermeiros, são, do lado da “procura”, uma das causas do aumento dos níveis de corrupção no nosso País. Os resultados dessa prática são óbvios: diminuição da qualidade do ensino e saúde dos cidadãos e degradação moral dos professores, dos alunos, dos encarregados de educação, dos médicos e dos pacientes e familiares.

11.  A corrupção é um problema com uma tripla dimensão: económica, cultural e política. Susan Rose-Ackerman e Daniel Kaufmann, entre outros, têm-se debruçado, extensamente, sobre essas questões. A corrupção é um fenómeno tão velho quanto o mundo. Contudo, ao nível mundial, alastrou-se durante a década de 1990. Este alastramento está associado, curiosamente, às reformas políticas e económicas registadas na década de 90, no seguimento do colapso dos regimes comunistas da Europa de Leste. Nas economias capitalistas, o peso do Estado na economia acentuou-se na década de 1960, produzindo factores que favoreceram a propagação da corrupção.

12.  O colapso das economias centralmente planificadas e a sua substituição por economias reguladas pelo mercado, numa primeira fase, agravaram o fenómeno da corrupção. Hoje, reconhece-se que o Estado tem um papel importante no combate à corrupção. A conclusão geral a que se chegou é que o Estado não deve ser produtor, mas deve assumir o seu papel de provedor de bens e serviços públicos e semi-públicos, assim como a de regulador. É nesta última perspectiva que devemos interpretar a recente aprovação da Lei da Probidade Pública, que “estabelece as bases e o regime jurídico relativos à moralidade pública e ao respeito pelo património público, por parte do agente público”.

13.  São vários os princípios que devem servir de pauta para os agentes públicos, durante a sua actuação. A Lei centra-se mais na questão da corrupção burocrática, isto é, na questão da corrupção administrativa, na corrupção que ocorre ao nível da implementação das políticas. Este tipo de corrupção não inclui a corrupção praticada pelos políticos, mas sim a corrupção em que estão envolvidos os funcionários da administração do Estado: a função pública, os ministérios e os fornecedores de serviços, tais como saúde e educação, polícia, alfândegas, transportes, etc. Deixa de lado a corrupção política, isto é, a corrupção que envolve os decisores políticos, a conhecida grande corrupção. Esta corrupção acontece nos mais altos níveis do sistema político. Esta corrupção tem lugar quando os políticos e os agentes do Estado, que são eleitos ou nomeados para criar e aplicar leis em nome do povo, são eles próprios corruptos. “A corrupção política existe quando os decisores políticos utilizam o poder político do qual dispõem, para sustentar o seu poder, status e riqueza” (Inge Amundsen e Vicente Pinto de Andrade, 2009:46). Embora a distinção entre corrupção política e corrupção administrativa seja por vezes ambígua, visto que depende da separação entre política e administração (que não é clara na maior parte dos sistemas políticos), essa distinção é importante ao nível analítico e prático. Em Angola, é conveniente distinguir a corrupção administrativa da corrupção política. Esta é, sem dúvida, responsável pelo alastramento da primeira. A corrupção ao nível dos decisores políticos serve de referência para a corrupção ao nível dos que se ocupam em implementar as políticas.

14.  A corrupção política acontece no nível superior do Estado e tem repercussões políticas. A corrupção política, para além de levar a uma afectação indevida de recursos, também afecta o modo como as decisões são tomadas. A corrupção política consiste na manipulação das instituições políticas e das regras e procedimentos em favor dos decisores políticos. Deste modo, a corrupção política influencia o funcionamento das instituições governamentais e do próprio sistema político como um todo. O resultado de todo este processo é a degradação das instituições e o aviltamento dos indivíduos. Por esta razão, a corrupção política no nosso País não deve ser vista somente como um desvio das normas legais e escritas, dos códigos de ética profissional e acórdãos dos tribunais. “A corrupção política existe quando as leis e as regulamentações são mais ou menos sistematicamente abusadas, ignoradas ou mesmo ajustadas pelos governantes para se adequarem aos seus interesses” (Inge Amundsen e Vicente Pinto de Andrade, 2009:47).

15.  A literatura sobre a corrupção política identifica dois processos básicos que estão na sua origem: extracção e preservação do poder.

16.  A corrupção política extractiva consiste nos métodos utilizados pelas elites governamentais para abusarem do poder que detêm para extrair e acumular recursos. Tem lugar quando os detentores do poder político enriquecem-se a si próprios, individualmente ou colectivamente. Os líderes políticos podem utilizar o seu poder com vista a capturar e acumular recursos de uma forma ilegal e imoral, por via de subornos, desvios e fraudes. Esse processo de enriquecimento pode também ser obtido em processos de privatização, concessão de terrenos, contratualização pública, empréstimos, bem como através de preferências que beneficiam os interesses comerciais dos detentores de cargos públicos, mesmo quando são legais ou foram tornados relativamente legais. É esta a razão que me leva a ser avesso às chamadas “parcerias público-privadas”.

17.  A corrupção praticada com fins de preservação do poder consiste na utilização corrupta de recursos, nomeadamente públicos, com a finalidade de preservar e expandir o poder. Tem lugar quando os detentores do poder político usam recursos, ou outros meios corruptos, com vista a manter ou a fortalecer o seu controlo do poder. Os mandatários do povo, eleitos ou nomeados, podem utilizar variadíssimas técnicas para se manterem no poder. Umas podem ser perfeitamente legais; outras, podem ser ilegais e até corruptas. O objectivo passa a ser a manutenção do poder, através da compra de apoios políticos por via do favoritismo, do clientelismo, da cooptação, do apadrinhamento político e da compra de votos. Os meios incluem a distribuição de benefícios financeiros e materiais (dinheiro, ofertas e rendimentos), mas também de bens simbólicos como status e “inclusão”. O processo de preservação e extensão do poder engloba, também, a manipulação de várias instituições de supervisão, fiscalização e controlo, criando-se, assim, os chamados “sindromas de impunidade”.

18.  Os dois processos políticos de corrupção, extracção de recursos para benefício privado e correspondente enriquecimento, bem como uso de meios corruptos para conservação do poder político, constituem categorias analíticas fundamentais, nomeadamente quando se pretende elaborar uma estratégia global de combate à corrupção. A maior parte das vezes, esses dois processos estão intimamente ligados. Uma grande parte dos escândalos de corrupção política apresenta esses dois aspectos: o dinheiro obtido através de subornos é usado para a compra de apoios políticos, por um lado, e a finalidade do poder é a obtenção de riqueza, bem como a finalidade da riqueza consiste na preservação do poder, por outro. A Lei da Probidade Pública é omissa ou vaga em relação aos mecanismos que têm sido utilizados em Angola pelos decisores políticos corruptos. Neste sentido, considero importante que os deputados melhoram o conteúdo da Lei, ou trabalhem em diplomas legais que distingam, claramente, a corrupção administrativa da corrupção política.

19.  A luta pela democracia e o seu aprofundamento é a única estratégia sustentável no longo prazo, quando se pretende erradicar a corrupção política sistémica. Porquê? Porque a democratização inclui dois elementos básicos: aumento da responsabilidade horizontal (controlos e equilíbrios institucionais credíveis e eficazes) e aumento da responsabilidade vertical (controlo popular aprofundado através da voz do povo e da participação dos cidadãos).

20.  A inclusão do “princípio da responsabilidade e da responsabilização do titular, do gestor, do responsável e do funcionário ou do trabalhador” na Lei da Probidade Pública é uma medida que não é suficiente para garantir a melhoria do funcionamento das nossas instituições. A responsabilidade horizontal é importante no combate à corrupção política, aquela que, no meu entender, é mais perniciosa, quer para o funcionamento do sistema político, quer para a organização e funcionamento do sistema económico. A responsabilidade horizontal tem a ver com o sistema de verificações, fiscalizações e equilíbrios institucionais (parlamento e poder judicial), tem a ver com o sistema de controlos constitucionais e institucionais entre eleições. Estes incluem o poder executivo (governo e entidades administrativas do Estado), o poder judicial e o poder legislativo, bem como as várias instituições de supervisão e fiscalização, tais como provedores, procuradores, investigadores e auditores.

21.  A maior parte dos sistemas políticos democráticos inclui um conjunto de regras e procedimentos formais que visam limitar o exercício do poder político e salvaguardar os direitos humanos e políticos. O sistema político consagrado na nossa Constituição ainda é pobre no que toca aos sistemas acima referidos. Para além de que o estabelecimento e a existência formal de instituições de responsabilidade horizontal não é, por si só, garantia de eficácia. Em situações de corrupção política instalada, essas instituições tornam-se ainda mais frágeis.

22.  O parlamento e o poder judicial, em democracia, são duas instituições fundamentais de verificações, fiscalizações e equilíbrios. São importantes para o controlo democrático da corrupção política. Mas, por vezes, são uma parte importante do problema da corrupção. Por esta razão é que a forma de fortalecer o nosso parlamento, no quadro do combate à corrupção, será lutar para que as futuras reformas constitucionais ajudem a garantir a sua crescente autonomia. Refiro-me à sua independência em relação ao poder executivo. A autonomia parlamentar, no meu entender, consistirá na sua capacidade de levar a cabo os seus mandatos, de interagir e de não estar sujeito à pressão do poder executivo e de desempenhar um papel democrático fundamental de fiscalizações e equilíbrios. Do ponto de vista prático, isto está relacionado com garantias constitucionais e com autonomia a nível pessoal e a nível financeiro. Este processo será longo e difícil, mas nenhum de nós se deve afastar dessa caminhada. Em relação ao poder judicial, trata-se de pugnar por reformas constitucionais que ajudem a garantir a sua respectiva autonomia. Um aspecto crucial consiste em garantir a liberdade de escolha pessoal e a segurança financeira. Mas também considero importante que haja transparência e justificação de decisões e acções judiciais, isto é, prestação de esclarecimentos.

23.  A corrupção política pode ser controlada através de uma série de outras medidas institucionais e procedimentais. A lista de medidas é extensa. Também é extensa a lista de medidas e ferramentas para limitar ou diminuir a corrupção burocrática. Contudo, as medidas para controlar e combater, quer a corrupção política, quer a corrupção administrativa, não são mutuamente exclusivas. Podem ser mutuamente reforçadas.

Referências bibliográficas:
Amundsen, Inge e Pinto de Andrade, Vicente  (editores) (2009): Ética no Sector Público, Luanda, UCAN e CMI.
Pinto de Andrade, Vicente (1999): Corrupção e Crescimento Económico, Luanda, FES.
Lei n.º3/10 de 29 de Março, Lei da Probidade Pública.
Lei n.º 6/99, de 3 de Setembro, Lei das Infracções Contra a Economia.

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